O Black Lives Matter (vidas negras importam, em inglês) é um movimento antirracista dos Estados Unidos que vem crescendo bastante nos últimos anos
© Kevin Lamarque/Reuters |
"Vivíamos um período em que morte de jovens negros havia se tornado algo tão banal que era preciso sacudir as pessoas e lembrá-las: 'Ei, nossas vidas importam!'. Por mais óbvio que isso seja", conta Opal Tometi, 34, uma das três cofundadoras do movimento.
No Brasil, onde estudo já apontou que policiais matam o triplo de negros em relação a brancos, estaríamos sofrendo do mesmo processo de naturalização dessas mortes, sugere Tometi.
Para ela, ao contrário do que se supõe, o presidente Donald Trump, ao se expressar de maneira abertamente racista, torna mais fácil o trabalho do movimento negro. "Ele é tão explícito que fica mais fácil para as pessoas entenderem do que se trata quando falamos de racismo", diz.
Tometi acha que o governo Jair Bolsonaro (PSL) pode ter o mesmo efeito por aqui. "Percebo que os movimentos sociais no Brasil estão mais fortes e experientes", diz a ativista, que hoje atua na ONG Black Alliance for Just Immigration (aliança negra para a imigração justa, em inglês), em Nova York.
Tometi veio ao Brasil para conhecer movimentos negros da Bahia. De passagem por São Paulo, ela participou nesta quinta (25) da Marcha da Mulher Negra, na Praça da República. No sábado (27), dá conferência sobre o Black Lives Matter no Sesc Santana.
O que é o Black Lives Matter, seis anos depois que o movimento surgiu?
Opal Tometi - Omovimento se fortaleceu e gerou mudanças mundo político. Outros movimentos surgiram pós-BLM. É muito emocionante ver o aumento da consciência, das ações e do compromisso político das pessoas com suas comunidades e com a vida das pessoas negras.
Como é o BLM da era Donald Trump?
Opal Tometi - Sabemos que ele é racista e promove todo tipo de ataque a certas minorias espalhadas pelos EUA. Mas sua eleição foi um sinal de que estávamos na direção certa. Nossos movimentos agiram de maneira tão efetiva que as coisas começaram a mudar, e os conservadores e a extrema direita se desesperaram, e elegeram este tipo.
Trump atacou, via redes sociais, quatro congressistas mulheres de grupos minoritários, sugerindo que elas odiavam os EUA e deveriam deixar o país. O que essas mulheres representam?
Opal Tometi - Foi a expressão mais abertamente racista de Trump até agora. Alexandria Ocasio-Cortez, Rashida Tlaib, Ayanna Pressley e Ilhan Omar são mulheres dinâmicas, carismáticas, populares e eficientes que incorporam o tipo de liderança que nosso país precisa há tanto tempo. Representam pessoas de várias etnias, idades e religiões. É imoral o presidente abrir espaço na sua agenda para atacar mulheres que estão fazendo o trabalho para o qual foram eleitas. Além de ser, claro, extremamente racista.
Ele disse para que voltassem para o lugar de onde vieram [uma é de família porto-riquenha, outra de origem palestina, uma é negra, outra é uma refugiada somali]. Ele sabe que vai receber ampla atenção de seus seguidores e da mídia. Distrai as pessoas das questões reais que impactam suas vidas ao mesmo tempo que sinaliza para outros racistas que as ataquem também.
Os crimes de ódio nos EUA crescem exponencialmente desde que Trump foi eleito. Em especial contra mulheres que usam véus, caso da congressista Ilhan Omar, muçulmana de origem somali e membro do partido democrata de Minessotta. Dias atrás, Trump fez um comício na Carolina do Norte em que falou tanto dela que todo o público começou a gritar: "Mande ela de volta! Mande ela de volta!" Foi nojento.
Trump as acusou de serem antipatrióticas. Outras pessoas já chamaram o BLM de terrorista. Há semelhança aí?
Opal Tometi - Gerações de ativistas já foram criminalizadas em suas ações. Acusadas de traição, espionagem ou terrorismo, o que é distrair as pessoas das causas pelas quais essas pessoas lutam. Fomos processadas várias vezes. Eu, inclusive. Somos "trolladas" o tempo todo nas redes. Mas o pior é que há leis propostas para enquadrar protestos como atos de terrorismo econômico porque bloqueiam ruas ou entradas de comércios. Isso mostra a inversão de valores que vivemos hoje, em que propriedade vale muito mais que uma vida.
O FBI até criou uma nomenclatura: o extremista identitário negro. Ou seja, em vez de focar o aumento dos crimes de ódio contra pessoas negras, eles estão dizendo: "Vocês, negros, que tiveram a audácia de dizer que as suas vidas importam é que são o problema".
A gestão Donald Trump aumentou o desafio dos movimentos antirracismo nos EUA?
Opal Tometi - Ele é tão explícito que torna mais fácil para as pessoas entenderem do que se trata quando falamos de racismo. Trump não está disfarçando seu pensamento ou escondendo suas políticas. Com isso, ele tem tornado mais fácil às pessoas reconhecerem a retórica, a ideologia e as políticas racistas.
Já que o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, tenta emular Donald Trump, devemos então esperar o fortalecimento de movimentos sociais antirracismo no Brasil?
Opal Tometi - Estamos vivendo tempos muito interessantes em que aliados estão se dando conta de como é dura e desafiante a vida em comunidades de pessoas não brancas. Estão tomando consciência do desfavorecimento dos negros na sociedade. Elas se sentem constrangidas e envergonhadas porque não percebiam isso com clareza e, quando o preconceito se torna algo evidente, essas pessoas se tornam aliados estão mais atuantes.
Estive agora em Salvador, e as lideranças dos movimentos negros de lá dizem que a única novidade de Bolsonaro nessa questão é que ele é mais explícito, e isso torna mais difícil não reconhecer a existência do racismo no Brasil.
Há dados de saúde, moradia, renda, educação e segurança pública que indicam maior vulnerabilidade da população negra no Brasil. Como se explica isso?Opal Tometi - É evidente que existe um problema aqui. Existe uma lógica racista que permeia toda a sociedade. E isso é algo muito familiar para mim, que venho de um lugar onde negros são 14% da população, mas 40% da população carcerária. Os dados mostram que há uma estrutura social que tem as pessoas negras como alvo. E é algo letal. Eu li a notícia da família que estava indo para uma festa, celebrar, e foi alvo de dezenas de tiros do Exército no Rio de Janeiro Essa tragédia partiu meu coração.
Mas isso não gerou por aqui a mesma dimensão de mobilização que o assassinato de jovens negros gerou nos EUA a partir de 2013, a partir do julgamento do segurança que matou o jovem Trayvon Martin, desarmado, voltando da loja de doces no condomínio de seu pai. O caso é a gênese do movimento BLM?
pal Tometi - Foi o primeiro de uma série de casos que projetaram a questão das vidas negras nos EUA. Mas ele não chamou a atenção de cara. Foi preciso muita mobilização de sua mãe e de seu pai. Foi preciso criar uma forte identificação das pessoas com ele: poderia ser seu filho, seu irmão. Aí, as pessoas começaram a olhar para os fatos de maneira diferente. Elas passaram a esperar que as instituições promovessem a justiça. A absolvição do atirador se tornou algo escandaloso, e a reação foi visceral [protestos ocorreram em mais de cem cidades americanas].
Por que um fato semelhante é capaz de promover um levante num lugar e não em outro?
Opal Tometi - Às vezes, quando você vê algo acontecendo com muita frequência, pode se tornar insensível. Acontece toda hora. Fica normal. Lideranças nos EUA tentaram virar essa chave sacudindo suas comunidades e lembrando que existe um outro jeito de viver e que nós merecemos Justiça.
Pouco se falou sobre isso, mas BLM foi uma mensagem inicialmente direcionada aos próprios negros. Uma carta de amor para o povo negro. "Ei, nossas vidas importam!" Vamos nos lembrar de que nós nos amamos e vamos lutar porque merecemos coisa melhor! Podemos mudar as injustiças, e criar um sistema que seja bom para nós porque somos nós que também sustentamos o sistema. Pagamos impostos e contribuímos social, política e culturalmente para a sociedade.
O BLM deriva de uma história de mais cem anos de movimentos negros e antiracismo nos EUA ao mesmo tempo em que é indissociável do feminismo. Como essas heranças se articulam?
Opal Tometi - Eu me considero uma feminista negra transnacional, conectada a um esforço mais amplo e que envolve mulheres, meninas e pessoas não binárias de todo o mundo.
Vivíamos uma era em que a morte de negros havia se tornado banal. De início, deixamos claro que aquilo não tratava apenas da brutalidade policial, mas de moradia, educação, trabalho, saúde. E deixamos claro que todas as vidas negras importavam, não interessa se fossem queer [fora do padrão heteronormativo de sexualidade], com deficiência ou imigrante -ou todas essas coisas juntas. Isso é algo que só mulheres poderiam fazer porque elas, literalmente, dão à luz toda a comunidade! (risos).
Temos interesse na qualidade de vida de todos. Então vamos cuidar de todos sem atribuir mais valor a um do que a outro. Somos um movimento radicalmente inclusivo, que aprendeu com a experiência de movimentos anteriores e passou a avaliar as ações que eram mais efetivas. Temos que talhar nossos movimentos para vencer porque a injustiça é muito grande. Estamos perdendo pessoas todos os dias nos EUA e no Brasil.
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