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segunda-feira, 1 de março de 2021

Líder deposta pelo golpe faz 1ª aparição após recorde de mortes em Mianmar

Aung San Suu Kyi parecia estar bem de saúde durante sua apresentação ao tribunal na capital do país, Naypyitaw

© Getty Images

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um mês depois de ser detida e deposta por um golpe militar que mergulhou Mianmar em caos político, econômico e diplomático, a líder civil Aung San Suu Kyi, conselheira de Estado e vencedora do Nobel da Paz, fez sua primeira aparição pública nesta segunda-feira (1º) em uma audiência por videoconferência.


Suu Kyi, 75, parecia estar bem de saúde durante sua apresentação ao tribunal na capital do país, Naypyitaw. "Eu vi Amay no vídeo, ela parece saudável", disse a advogada Min Min Soe à agência de notícias Reuters, usando um termo afetuoso que significa "mãe" para se referir à sua cliente.

A audiência ocorreu em um momento de escalada de violência em Mianmar. Desde a semana do golpe, milhares de manifestantes têm se reunido diariamente para protestar contra as Forças Armadas e para pedir a libertação das mais de 1.100 pessoas detidas pelos militares -dados da Associação de Proteção a Presos Políticos de Mianmar.

Neste domingo (28), ao menos 18 pessoas morreram durante a repressão aos protestos coordenada pelos militares. As forças de segurança do país vêm usando balas de borracha, gás lacrimogêneo e canhões de água para dispersar os atos. Não param de crescer, entretanto, os relatos sobre o uso de munição letal contra os civis, o que desperta a memória do país sobre o violento histórico de reação a opositores.

Em um discurso transmitido pela televisão estatal, o chefe das Forças Armadas, general Min Aung Hlaing, disse que os líderes dos protestos e os "instigadores" continuarão sendo punidos, assim como funcionários públicos que se recusarem a trabalhar para o novo regime -movimentos grevistas têm se organizado contra os militares, de modo que vários serviços do país estão prejudicados.

O Exército também está investigando supostos crimes financeiros cometidos pelo governo civil. Segundo o general, as autoridades depostas fizeram mau uso do dinheiro destinado aos esforços de prevenção contra a Covid-19 e serão investigadas por corrupção.

Suu Kyi é um dos alvos do inquérito. O motivo de sua detenção foi uma acusação obscura segundo a qual ela teria importado ilegalmente seis walkie-talkies. Dias depois, ela também foi acusada de uma suposta violação dos protocolos de combate à propagação do coronavírus.

Nesta segunda-feira, de acordo com sua equipe de defesa, a líder civil recebeu mais duas acusações criminais formais. A primeira por ter supostamente violado uma lei de telecomunicações que estipula licenças para equipamentos.

A segunda, que remete ao código penal escrito ainda no período colonial de Mianmar, a incrimina por publicar informações que podem "causar medo ou alarme", o que seria proibido pela lei. Pouco antes de ser presa, e já temendo um possível golpe, Suu Kyi publicou um comunicado que foi interpretado como uma convocação para a realização de protestos contra as Forças Armadas.

"As ações dos militares são atos para colocar o país novamente sob uma ditadura. Peço às pessoas que não aceitem isso, que respondam e protestem de todo o coração contra o golpe dos militares", escreveu a conselheira, na ocasião.

Segundo críticos ao regime, as acusações foram forjadas. Suu Kyi deve ser submetida a uma nova audiência em 15 de março.

Enquanto isso, as ruas das principais cidades do país continuam sendo tomadas pelos manifestantes, a despeito da violência da repressão. Segundo o gabinete de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), a polícia disparou contra a multidão em vários lugares, matando 18 pessoas.

O levantamento da ONU já torna este domingo (28) o dia mais violento desde que os protestos começaram, mas o número de vítimas pode ser ainda mais alto. Segundo um comitê formado por legisladores eleitos no ano passado -e impedidos pelo golpe de assumir os cargos-, houve 26 mortos nos protestos, mas a informação não pôde ser confirmada de maneira independente pelas agências de notícias internacionais.

"Temos que continuar o protesto, não importa o que aconteça", disse o manifestante Thar Nge à Reuters, pouco depois que ter sido alvo de bombas de gás lacrimogêneo que o obrigaram a abandonar uma barricada erguida em uma rua de Rangoon, a maior cidade do país.

O golpe e a repressão aos dissidentes que o sucedeu continua atraindo críticas da comunidade internacional. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, afirmou que os Estados Unidos condenam "a violência abominável das forças de segurança" mianmarenses e que continuarão "a promover a responsabilização dos responsáveis".

"Encorajamos todos os países a falarem uma só voz em apoio à vontade do povo", escreveu Blinken no Twitter.

O ministro das Relações Exteriores do Canadá, Marc Garneau, também fez declaração semelhante e acusou os militares de Mianmar de recorrerem a uma "violência terrível, incluindo força letal, contra seu próprio povo".

"Nenhum regime que use força para suprimir o desejo democraticamente expresso de seu povo pode ser legitimado", escreveu Garneau.

"O povo de Mianmar quer que suas vozes sejam ouvidas e estão mostrando uma grande bravura em resposta a essa brutalidade", disse Dominic Raab, chefe da diplomacia britânica. "A comunidade internacional deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para pressionar o fim da violência, libertar os detidos arbitrariamente e restaurar o governo eleito".

Os chanceleres dos países-membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) -grupo formado por Mianmar, Brunei, Camboja, Indonésia, Laos, Malásia, Filipinas, Tailândia, Singapura e Vietnã- devem se reunir nesta terça-feira (2) para traçar uma rota de retorno ao regime democrático, disse a chanceler de Singapura, Vivian Balakrishnan.

Ela se juntou ao grupo de autoridades que pedem o fim do uso de munição letal contra os manifestantes e a liberdade de Suu Kyi e de outros presos políticos.

Para Tom Andrews, enviado da ONU a Mianmar, "o que o mundo está vendo em Mianmar é ultrajante e inaceitável. Palavras de condenação são bem-vindas, mas insuficientes".

Em um comunicado direcionado aos países-membros ao Conselho de Segurança da entidade, ele sugeriu ações práticas como um embargo de armas, mais sanções aos militares e a conglomerados empresariais que os financiam e um recurso ao Tribunal Penal Internacional.

O Exército vem tentando usar supostas acusações de fraude no pleito como justificativa para a tomada de poder. Os militares também acrescentaram à narrativa o argumento de que a comissão eleitoral do país usou a pandemia de coronavírus como pretexto para impedir a realização de uma campanha justa. Dizem ainda que agiram de acordo com a Constituição e que a maior parte da população apoia sua conduta, acusando manifestantes de incitarem a violência.

A Liga Nacional pela Democracia (LND), partido de Suu Kyi, obteve 83% dos votos e conquistou 396 dos 476 assentos no Parlamento nas últimas eleições em Mianmar, realizadas em novembro do ano passado. A legenda, entretanto, foi impedida de assumir quando o golpe foi aplicado no dia da posse da nova legislatura. O Partido da União Solidária e Desenvolvimento, apoiado pelos militares, obteve apenas 33 cadeiras.

CRONOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA DE MIANMAR

1948: Ex-colônia britânica, Mianmar se torna um país independente

1962: General Ne Win abole a Constituição de 1947 e instaura um regime militar

1974: Começa a vigorar a primeira Constituição pós-independência

1988: Repressão violenta a protestos contra o regime militar gera críticas internacionais

1990: Liga Nacional pela Democracia (LND), de oposição ao regime, vence primeira eleição multipartidária em 30 anos e é impedida de assumir o poder

1991: Aung San Suu Kyi, da LND, ganha o Nobel da Paz

1997: EUA e UE impõe sanções contra Mianmar por violações de direitos humanos e desrespeito aos resultados das eleições

2008: Assembleia aprova nova Constituição

2011: Thein Sein, general reformado, é eleito presidente e o regime militar é dissolvido

2015: LND conquista maioria nas duas Casas do Parlamento

2016: Htin Kyaw é eleito o primeiro presidente civil desde o golpe de 1962 e Suu Kyi assume como Conselheira de Estado, cargo equivalente ao de primeiro-ministro

2018: Kyaw renuncia e Win Myint assume a Presidência

2020: Em eleições parlamentares, LND recebe 83% dos votos e derrota partido pró-militar

2021: Militares alegam fraude no pleito, prendem lideranças da LND, e assumem o poder com novo golpe de Estado


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