Os 32 episódios do programa, com produção do jornal Público, cumprem a promessa de ajudar o ouvinte a pensar o tempo histórico num ritmo que, embora distante das urgências presentes, é capaz de iluminá-las
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FOLHAPRESS - Em densidade informativa e qualidade literária, pouquíssimos podcasts em língua portuguesa são capazes de rivalizar com "Agora, Agora e Mais Agora", série gravada em 2020, durante a primeira onda mundial da Covid-19, pelo historiador luso Rui Tavares.
Os 32 episódios do programa, com produção do jornal Público, cumprem a promessa de ajudar o ouvinte a pensar o tempo histórico num ritmo que, embora distante das urgências presentes, é capaz de iluminá-las.
Se a afirmação acima soa um tanto grandiloquente, convém ressaltar que não há nada de pomposo no texto de Tavares. "Agora, Agora e Mais Agora" é, em parte uma espécie de prévia do livro de mesmo título que ele estava pesquisando e escrevendo nos EUA antes que a pandemia acabasse por deixá-lo isolado nos Açores, junto com a família.
Isso explica os aspectos mais literários de suas falas, mas a eles se somam certa oralidade e bom humor que se aproximam de uma conversa entre amigos -até porque a estrutura do podcast é a de um diálogo entre a voz solitária de Tavares e o público.
Esse lado mais íntimo dos episódios começa pela própria explicação do nome da empreitada. "Agora, agora e mais agora" é uma frase que faz parte da história familiar do escritor. Sua bisavó, depois de sofrer um AVC que afetou sua fala nos anos 1940, passou a repetir a expressão em diferentes entonações (era a única frase que conseguia pronunciar).
Tavares usa essa situação inusitada (que não presenciou pessoalmente, já que a bisavó morrera antes de ele nascer, mas que passara a fazer parte da história oral de sua família) como símbolo da relação complicada que os seres humanos têm com o momento em que vivem, feita de ansiedade, esperança e perplexidade.
O historiador aborda esse tema geral no que chama de "seis memórias do último milênio", que se espraiam do século 10º d.C., no coração da Idade Média, a 1948, quando os países-membros das Nações Unidas aprovam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Diante de um arco tão amplo da história mundial, Tavares opta, em grande medida, pelo que chama de "lados B" -personagens e movimentos que normalmente não aparecem como os grandes nomes da trajetória humana, mas cuja presença funcionou como uma espécie de rio subterrâneo a alimentar figuras mais conhecidas.
Ao falar do "Iluminismo perdido" do Islã medieval, por exemplo, ele resgata a obra de um especialista em Aristóteles da Ásia Central, Abu Nasr Al-Farabi (872-951). Seu nome deu origem às palavras "alfarrábio" e "alfarrabista" (livro antigo e pessoa ou lugar que vende tais livros, respectivamente), e seu pensamento influenciou o muçulmano Averróis e o judeu Maimônides, entre outros grandes nomes da filosofia medieval.
Al-Farabi e outras figuras menos conhecidas da história das ideias conseguem, no fim das contas, ilustrar as grandes transformações do último milênio tão bem quanto nomes mais conhecidos.
Tavares opta ainda por dedicar boa parte de seus episódios a séculos mais distantes -além da Idade Média, o mundo da Renascença e do século 18- e relativamente pouco espaço ao século 20, o que acaba se revelando uma escolha acertada.
Isso porque as preocupações centrais do podcast -os desafios trazidos por ambientes de intolerância, polarização e fanatismo, como se constrói uma comunidade política pluralista, o significado da ideia de direitos humanos- não se restringem à modernidade.
Há um fio que conecta esses debates, dos eruditos judeus, muçulmanos e cristãos na Espanha medieval aos artífices das Nações Unidas nos 1940, passando pela Florença do século 15 e pelo "despotismo esclarecido" do marquês de Pombal (1699-1782).
Pombal e outros portugueses, ilustres e menos conhecidos, obviamente aparecem nas histórias de "Agora, Agora e Mais Agora", mas isso acontece sobretudo dentro de um olhar global, segundo as conexões que unem a trajetória lusa às suas antigas comunidades judaicas e islâmicas, aos triunfos e desastres do Renascimento ou à reconstrução europeia depois da Segunda Guerra Mundial.
Agridoce e otimista ao mesmo tempo, apesar de tudo, a série talvez seja uma das melhores maneiras de ajudar falantes da língua portuguesa a compreender como chegamos até aqui.
AGORA, AGORA E MAIS AGORA
Avaliação Ótimo
Quando Disponível nas plataformas Spotify, Apple Podcasts e Soundcloud
Produção Jornal Público
Link: https://www.publico.pt/podcast-agora
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