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terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Festas de Boris no lockdown são falhas de liderança e erros difíceis de justificar, aponta investigação

O documento de 12 páginas aponta ter havido "falhas de liderança e de julgamento" por diferentes membros do governo ao permitirem a realização de eventos enquanto o país estava sob duras restrições

© Getty

BAURU, SP (FOLHAPRESS) - O governo do Reino Unido divulgou nesta segunda-feira (31) o relatório da investigação interna que apura as festas e outros eventos realizados em Downing Street, residência oficial do primeiro-ministro Boris Johnson, que teriam violado as regras do confinamento imposto como contenção da pandemia de Covid.

O documento de 12 páginas aponta ter havido "falhas de liderança e de julgamento" por diferentes membros do governo ao permitirem a realização de eventos enquanto o país estava sob duras restrições.​

O relatório também descreve o comportamento acerca das reuniões como "difíceis de justificar", critica os erros dos que estão "no coração do governo" -sem citar Boris diretamente- e recomenda políticas de proibição de consumo de bebidas alcoólicas em locais de serviço público, além da criação de canais de denúncia para servidores que testemunharem irregularidades.

A investigação abrange um total de 16 eventos distribuídos em 12 datas entre maio de 2020 e abril de 2021 e inclui reuniões de servidores no jardim de Downing Street, despedidas de funcionários, noite de jogos às vésperas do Natal e até uma festa de aniversário para o premiê.

No relatório, Sue Gray, funcionária do governo incumbida do inquérito, afirma, porém, que não pôde se aprofundar em alguns detalhes dos eventos investigados devido a uma solicitação feita pela Polícia de Londres. A corporação anunciou na semana passada a abertura de uma investigação criminal sobre parte das festas envolvendo o premiê e seus funcionários. Na sexta (28), a Scotland Yard admitiu ter pedido que o inquérito de Gray fizesse "referência mínima" aos eventos cobertos pela apuração policial.

Em tese, o objetivo da restrição seria evitar conflitos entre as duas investigações -embora a do governo tenha começado antes-, mas a solicitação levantou rumores de que pelo menos um dos relatórios poderia conter uma versão maquiada dos escândalos.

A suspeita, agora, provou-se justificada. "Como resultado das investigações da Polícia Metropolitana, e para não prejudicar o processo investigativo da polícia, eles me disseram que seria apropriado fazer apenas uma referência mínima às reuniões nas datas que estão investigando", explica Gray no relatório.

"Infelizmente, isso significa necessariamente que estou extremamente limitada no que posso dizer sobre esses eventos, e não é possível, no momento, fornecer um relatório significativo que defina e analise as extensas informações factuais que consegui reunir."

Diante da questão, o gabinete do premiê pediu que Gray atualize seu relatório uma vez que a investigação fosse concluída -essa nova versão seria divulgada publicamente, segundo o governo.

De acordo com a segunda-secretária de gabinete, a investigação contou com uma equipe que não teve envolvimento em nenhum dos eventos controversos. Ela assumiu a condução do inquérito quando Simon Case, a quem a responsabilidade fora inicialmente atribuída, deixou o cargo, após a imprensa apontar que um dos encontros irregulares teria acontecido em seu escritório.

Na apuração, foram ouvidas mais de 70 pessoas para entender a natureza das reuniões, principalmente os locais em que foram realizadas, quem eram os presentes e quais eram as finalidades dos encontros. Nenhum nome ou detalhe espinhoso, porém, foi divulgado no relatório.

"Não cabe a mim julgar se a lei penal foi violada; isso é uma questão para [as agências de] aplicação da lei", escreve Gray, acrescentando que manteve contato com a polícia ao longo de todo o processo, iniciado em dezembro de 2021. "Nenhuma conclusão deve ser tirada, ou inferências feitas, a partir disso, a não ser que agora cabe à polícia considerar o material relevante em relação a esses incidentes."

Ainda segundo a relatora, a polícia não pediu que ela omitisse detalhes a respeito dos eventos que não fazem parte da investigação criminal. Mas Gray optou por fazê-lo sob a alegação de que não se sente capaz de publicá-los sem comprometer o equilíbrio geral dos resultados do inquérito.

Estão entre os eventos investigados pela polícia uma suposta festa no apartamento de Boris em 13 de novembro de 2020 e uma que teve um convite enviado pelo secretário pessoal do premiê dizendo "traga sua bebida", em 20 de maio do mesmo ano.

Segundo o jornal britânico The Guardian, a polícia metropolitana já recebeu 300 imagens e 500 páginas de documentos relacionadas aos eventos.

Gray afirma que cogitou adiar a divulgação do documento e esperar o fim da investigação policial, mas devido ao "amplo interesse público" no tema preferiu seguir adiante, ainda que com uma versão menos incisiva. Diz ainda não ter tecido comentários sobre as dúvidas a respeito do desacordo das reuniões controversas com as normas sanitárias em vigor à época.

"Não julguei apropriado fazê-lo, dada a investigação policial que está em andamento." A relatora listou, entretanto, todas as restrições -e suas datas- impostas no período compreendido pela investigação, quase como se sugerisse que os leitores chegassem às próprias conclusões.

"As dificuldades sob as quais os cidadãos de todo o país trabalharam, viveram e, infelizmente, até morreram, observando rigorosamente regulamentos e orientações do governo, são bem conhecidas", afirma Gray no trecho do documento destinado a contextualizar a investigação. "Todos os cidadãos foram impactados pela pandemia. Todos fizeram sacrifícios pessoais, alguns dos mais profundos, ao não conseguir ver entes queridos em seus últimos momentos ou cuidar de familiares e amigos vulneráveis."

Diante desse cenário, conclui que os comportamentos envolvendo as reuniões são "difíceis de justificar". Para ela, os eventos "representam uma grave falha em observar os altos padrões esperados daqueles que trabalham no coração do governo". Para a relatora, a realização das festas denota que houve "pouca atenção", além de "falhas de liderança e de julgamento", por parte dos responsáveis por Downing Street e pelo gabinete do premiê. Ela também sugere a elaboração de uma "política clara e robusta" contra o consumo de bebidas alcoólicas por funcionários públicos em ambiente de trabalho.

Gray recomenda, ainda, a criação de canais de denúncia de irregularidades testemunhadas pelos servidores. "Alguns funcionários queriam levantar preocupações sobre comportamentos que testemunharam no trabalho, mas às vezes se sentiam incapazes de fazê-lo. Nenhum membro da equipe deve se sentir incapaz de denunciar ou contestar a má conduta onde a testemunhou", diz.

​​Boris nunca esteve tão ameaçado, mas, apesar do número crescente de pedidos de renúncia, inclusive de membros do seu partido, o premiê vinha respondendo a críticos, jornalistas e parlamentares que aguardassem a divulgação do relatório. Com o documento agora tornado público, ele mais uma vez foi ao Parlamento e pediu desculpas.

"Primeiramente, gostaria de dizer que sinto muito. Sinto muito pelas coisas que simplesmente não acertamos, e também lamento pela forma como este assunto foi conduzido", afirmou.

"Não adianta dizer que isso ou aquilo estava dentro das regras, e não adianta dizer que as pessoas estavam trabalhando duro. Essa pandemia foi difícil para todos. Pedimos às pessoas em todo o país que fizessem os sacrifícios mais extraordinários, que não encontrassem seus entes queridos, que não visitassem parentes antes de morrerem, e eu entendo a raiva que essas pessoas sentem."

Após a divulgação, o porta-voz do premiê reforçou a versão de que Boris acredita não ter infringido a lei.

A presença do político em alguns dos eventos gerou forte reação, tanto do seu partido quanto da oposição. O conservador Aaron Bell contou, emocionado, sobre o funeral de sua avó durante o lockdown. "[Havia] Apenas dez pessoas no velório. Muitas pessoas que a amavam precisaram participar online. Não abracei meus irmãos, não abracei meus pais" lembrou. "O primeiro-ministro pensa que eu sou um idiota?"

Já Keir Starmer, líder da oposição trabalhista, disse que Boris culpa todo mundo exceto ele mesmo. "Não pode haver dúvida que o próprio primeiro-ministro é alvo de uma investigação criminal." Houve até mesmo a expulsão do Parlamento do líder do Partido Nacional Escocês, Ian Blackford, após ele acusar Boris de enganar a Casa, algo que forçaria o premiê a renunciar.

No início do mês, também diante do Parlamento, Boris pediu "desculpas sinceras" ao admitir pela primeira vez que furou as regras de confinamento. Dias depois, dirigiu as mesmas palavras à rainha Elizabeth 2ª por festas no gabinete na véspera do funeral do príncipe Philip, quando o Reino Unido estava em luto.​ ​

Pediu desculpas uma terceira vez quando questionado sobre acusações de que não apenas sabia da festa em Downing Street, para a qual os convidados foram instruídos a levar bebidas, como deu aval para o prosseguimento do evento.

Apesar do cenário complicado para o premiê, a divulgação de uma versão mais limitada do relatório pode dar ao líder britânico e a seus apoiadores mais tempo para tentar persuadir colegas a não apresentarem um moção de desconfiança, o primeiro passo para tirá-lo do cargo.

Para isso, é necessários que ao menos 54 dos 360 parlamentares da legenda escrevam a moção a um órgão do partido chamado Comitê de 1922. No documento, eles devem expressar dúvidas de que Boris pode se manter como premiê.

A tarefa pode não ser fácil. O conservador Bernard Jenkin declarou, após a divulgação do relatório, não apoiar mais Boris e disse que muitos outros são abertamente contrários ao líder britânico. "Os deputados do Partido Conservador não precisam de lembretes sobre como se livrar de um líder falido."

Em 2019, a então primeira-ministra Theresa May renunciou à liderança dos conservadores após ter governo marcado pelas indefinições sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, o brexit.

A incapacidade de obter a aprovação do Parlamento britânico ao acordo de divórcio que ela negociou durante dois anos com Bruxelas obrigou May a pedir dois adiamentos para o brexit, o segundo deles até 31 de outubro. Essa demora minou seu apoio dentro do partido, o que acabou levando à sua saída.

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