Construído nos anos 1960 para abrigar conjuntos habitacionais populares, Kennedy teve um boom populacional que inclui "desplazados" (deslocados internos pelos conflitos armados no interior), refugiados venezuelanos e grupos de sem-teto, que armam acampamento ou alugam camas em pensões por menos de US$ 2 a noite.
© Ricardo Moraes / Reuters |
SYLVIA COLOMBO
BOGOTÁ, COLÔMBIA FOLHAPRESS) - Faz frio na manhã de quinta-feira em Kennedy, bairro ao sul de Bogotá, mas as ruas já estão cheias de ambulantes. Sacolas de mercadorias se misturam a pequenas tendas em que comerciantes dormem para não perder o ponto de venda quando amanhecer -a disputa pelos melhores locais, contam alguns, por vezes se dá a pauladas ou golpes de faca.
Construído nos anos 1960 para abrigar conjuntos habitacionais populares, Kennedy teve um boom populacional que inclui "desplazados" (deslocados internos pelos conflitos armados no interior), refugiados venezuelanos e grupos de sem-teto, que armam acampamento ou alugam camas em pensões por menos de US$ 2 a noite.
Nesse ambiente de pobreza e desolação, facções criminosas se infiltram e disputam espaço. Além de venderem drogas em pequenas quantidades, usam caminhões frigoríficos que passam pelo bairro para transportar substâncias ilegais que abastecem o mercado ilícito do centro da capital.
Kennedy é um microcosmo da violência na Colômbia, que aumentou na gestão do atual presidente, Iván Duque. Só no último mês foram encontrados 16 corpos no bairro, em terrenos baldios, lixões e no rio Tunjuelo, que corta a localidade. Segundo a polícia, as mortes estão vinculadas à disputa por espaços do narcotráfico.
"Medo, temos medo. Não saímos de casa depois das 18h, porque nessa hora [os ambulantes] já estão brigando na rua pelos pontos do dia seguinte. E de madrugada há ajustes de contas [entre gangues]. Muitas vezes acordamos com a polícia remexendo lixões ou carregando bolsas em que foram embrulhados cadáveres", conta Paz Barrera, 52, comerciante e moradora do bairro.
Para o especialista em violência Andrés Nieto, da Universidade Central, "o aumento dos casos de violência relacionados ao narcotráfico na periferia das grandes cidades tem a ver com o reaquecimento da economia ilegal, passados os meses de restrições da pandemia".
A tendência, porém, é vista também no interior do país. Embora as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) tenham se desmobilizado por meio de um acordo de paz em 2016, dissidências da guerrilha uniram-se a grupos criminosos que atuam em distintos pontos colombianos.
Se depois da assinatura do tratado um ambiente de relativa calma chegou a reinar, com reflexo na queda na taxa de homicídios, logo no início da gestão Duque -que assumiu com discurso belicoso em relação ao crime organizado- os índices começaram a aumentar de novo. De 24 assassinatos para cada 100 mil habitantes em 2018, a cifra na Colômbia hoje é de 27 a cada 100 mil.
"Desde 1997 víamos uma melhora gradual, por uma série de fatores, mas nos últimos quatro anos houve um freio nesse caminho", diz à Folha de S.Paulo Jeremy McDermott, cofundador e diretor do think tank Insight Crime, dedicado ao crime organizado nas Américas e que monitora o tema na Colômbia há 25 anos. "Os números mostram que a situação é pior hoje do que quando Duque assumiu -o que não deixa de ser irônico, uma vez que ele se elegeu apoiado em uma plataforma de segurança."
A melhora a que McDermott se refere está ligada aos tratados de paz com guerrilhas e paramilitares e com a política linha-dura adotada nas gestões de Álvaro Uribe e Juan Manuel Santos.
Para o primeiro turno das eleições presidenciais, neste domingo (29), o Ministério da Defesa alertou que há 290 municípios sob risco extremo de episódios de violência e destacou para eles observação especial das forças de segurança. O pleito tem, de acordo com as últimas pesquisas, o esquerdista Gustavo Petro (40% das intenções de voto) como favorito –para o caso de um segundo turno, disputam a outra vaga os direitistas Federico Gutiérrez (27%) e Rodolfo Hernández (20%).
Todos são a favor da implementação do acordo de paz e de um enfrentamento ao crime organizado menos frontal que o do atual presidente, embora haja diferenças em seus programas na plataforma de segurança pública.
Os alertas das autoridades aumentaram depois que o Clã do Golfo, uma das principais facções criminosas do país, realizou uma "greve armada" em resposta à extradição de seu líder, Dairo Antonio Úsuga, conhecido como Otoniel, para ser julgado nos EUA. Houve atos de violência registrados em mais de cem municípios, em 11 dos 32 departamentos da Colômbia.
"Esse movimento foi uma ameaça à democracia colombiana e deu mostras de que Duque perdeu parte do controle sobre os grupos criminosos –algo que já tinha ocorrido nas gestões anteriores, de Santos e Uribe", diz o analista James Bosworth, do Wilson Center. "Se um grupo armado pode causar violência em cem municípios, também pode reprimir eleitores e abalar a legitimidade da democracia."
Segundo o relatório da Defesa, os riscos mais altos de violência estão nos departamentos de Norte de Santander, Antioquia, Chocó, Nariño, Cauca, Meta, Putumayo e Huila. "O Estado deve implementar mais mecanismos de investigação e verificação de denúncias relacionadas a delitos eleitorais e ameaças contra candidatos ou suas campanhas. Também deve redobrar esforços nas zonas rurais e garantir a livre participação de eleitores", diz Carlos Camargo, da Defensoria do Povo, uma espécie de ouvidoria do Estado.
Para McDermott, a política de Duque de perseguir os cabeças das organizações criminosas não se mostrou eficaz e não deveria ser repetida pelo sucessor. "O esperado é uma fragmentação dos grupos, seguindo um padrão do cenário do crime organizado na Colômbia", afirma. Segundo ele, esse movimento vem ocorrendo desde a desmobilização dos paramilitares, entre 2003 e 2006, de modo que hoje há cada vez menos grupos grandes dedicados ao narcotráfico com alcance nacional -como foram os cartéis de Cali e Medellín.
"A proliferação de organizações menores administrando a economia ilegal se dá mesmo com a Colômbia produzindo mais e mais cocaína do que nunca. A prisão de Otoniel provavelmente causará o aumento da autonomia de vários de seus subgrupos."
No último debate presidencial, os candidatos explanaram suas posições em relação à violência no país. Petro disse querer a implementação total do acordo com as Farc e a reabertura das negociações com a guerrilha do ELN (Exército de Libertação Nacional). No combate aos grupos criminosos, prevê estabelecer investigações para "conhecer seus vínculos com a política e o empresariado".
Fico Gutiérrez também crê na implementação do acordo com as Farc e em aumentar os investimentos em infraestrutura no interior, "para melhorar a qualidade de vida dos que hoje encontram uma vida mais fácil no crime". Já o terceiro colocado, Rodolfo Hernández, afirmou que "a paz se alcança dando vida digna aos cidadãos, com trabalho, terras e assistência do Estado".
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