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segunda-feira, 6 de novembro de 2023

'Não pude nem dar um beijo no meu filho', diz mãe de jovem morto por milícia no Rio

"Queria que o governo pudesse dar uma cobertura para os filhos de pessoas que foram vítimas desse sistema que está dominando o Rio de Janeiro", disse Andreia Bastos

© Reprodução Notícias ao Minuto - imagem ilustrativa

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - No sétimo dia de desaparecimento de Adriel Andrade Bastos, 24, a mãe dele passou a rezar nas margens do rio Capenga, na Baixada Fluminense. "Água, devolve o meu filho. Faz com que ele suba", dizia Andreia Bastos, 49. Dias depois, o corpo emergiu.

O rio é um dos afluentes do Guandu, que abastece a cidade do Rio de Janeiro. De acordo com investigações, ambos são utilizados por milicianos para desovar corpos -exatamente o que aconteceu com Adriel, torturado e morto em agosto de 2022.

"Queria que o governo pudesse dar uma cobertura para os filhos de pessoas que foram vítimas desse sistema que está dominando o Rio de Janeiro. É um sistema que está assassinando as pessoas, deixando filhos órfãos, deixando famílias sem seus entes queridos, mães sem seus filhos. Virou uma matança", afirmou Andreia.

Como a Folha de S.Paulo mostrou, milicianos estão presentes em pelo menos 833 áreas do Rio de Janeiro. Nestes locais, os grupos criminosos ameaçam e extorquem comerciantes e moradores, além de controlar a oferta de serviços como gás e internet.

As regiões com maior presença de milícias são a zona oeste carioca e a Baixada Fluminense -região onde Adriel foi morto.

Segundo a investigação da Polícia Civil, milicianos retiraram o jovem e três amigos de dentro de um carro de aplicativo em Nova Iguaçu, cidade da região metropolitana do Rio. O grupo iria ao shopping, comprar uma bicicleta para a filha de Adriel, de dois anos.

O veículo foi interceptado por homens mascarados e armados com fuzis durante o dia, na frente de um bar lotado.

Andreia fez uma investigação própria para tentar entender porque o filho foi morto. Adriel morava sozinho e, na véspera do rapto, recebeu um grupo de amigos em seu apartamento.

Segundo a mãe, um desses jovens teria cometido um roubo -Adriel não sabia disso. O crime foi denunciado a milicianos que atuam na área, que decidiram matar todos do grupo.

"As milícias da baixada têm esse histórico de grupos de extermínio dos xerifes do local, que seriam os mantenedores da ordem", disse o promotor Fábio Corrêa.

Ainda segundo os familiares, no veículo, além dos quatro jovens, estavam a namorada de Adriel e o motorista de aplicativo, ambos liberados pelos criminosos.

O corpo do jovem foi encontrado no rio Capenga por um helicóptero da TV Record, onze dias após o desaparecimento. A mãe reconheceu o filho ao ver a imagem, transmitida ao vivo pela televisão.

"Ele estava de bruços, com uma das mãos para cima, de short. Parecia que estava dormindo, ainda pensei que poderia estar vivo na beira do rio", disse Andreia.

Segundo a polícia, Adriel e os outros foram torturados e mortos por Delson Dias Lima, o Delsinho. Ele era irmão de Danilo Dias Lima, o Tandera, apontado como um dos chefes da milícia que atua na região.

Delsinho foi achado morto dez dias depois do corpo de Adriel ter sido identificado. A reportagem não localizou a defesa de nenhum dos suspeitos.

Um inquérito da delegacia de Seropédica, município da baixada, dá detalhes de como o grupo criminoso atua. Em imagens anexadas à investigação e obtidas pela reportagem, Delsinho aparece torturando e decapitando duas vítimas. Em uma das gravações, o sangue de uma delas espirra em seu tênis -ele foi identificado exatamente por causa do calçado visto nas imagens.

"Os vídeos eram guardados pelo miliciano [Delsinho] como uma espécie de troféu e difundidos para impor o medo", diz o delegado Vinícius Miranda.

"Constatamos que o Delson Lima torturava impiedosamente todos aqueles que ele tinha como suspeitos. Pessoas que nada fizeram foram friamente torturadas até a sua morte", afirmou o delegado.

Dos outros três jovens raptados com Adriel, somente um já teve o corpo encontrado. O resto segue desaparecido.

No dia do enterro de Adriel, sua mãe presenteou a neta com a bicicleta que o filho pretendia comprar. Após a morte, Andreia diz ter entrado em depressão. Conta ter crises de pânico, o que a impede de voltar a trabalhar como promotora de vendas. "Não pude nem dar um beijo no meu filho, me despedir. O enterro foi com caixão fechado", disse.

VIÚVAS DE MILICIANOS RELATAM MEDO

Mesmo familiares de integrantes da milícia dizem ter medo de serem vítimas do grupo no futuro. A viúva de um homem que, segundo a Promotoria, integrou a quadrilha, conversou com a reportagem. Segundo denúncia à Justiça, seu marido foi morto durante uma disputa interna, no ano passado.

"Tenho filhos pequenos que só dependem de mim. Não tenho ajuda de nada, nem de ninguém. Levo uma vida de medo porque moro próximo onde meu marido foi morto", disse ela, que pediu para não ser identificada por questões de segurança. "A realidade é essa: perdemos quem amamos e ainda corremos risco de perder a própria vida."

Outra viúva de miliciano disse que, desde a morte do marido, nunca recebeu ajuda do grupo -diferente, por exemplo, do que acontece com o tráfico de drogas, que costuma auxiliar os familiares dos mortos.

No estado do Rio de Janeiro foram registrados 3.347 casos de desaparecimentos nos primeiros sete meses do ano. Mais da metade, 1.711, aconteceu na Baixada Fluminense e na zona oeste da capital, exatamente as áreas com predominância das milícias.

Para a delegada Ana Carolina Caldas, da Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense, a maioria dos desaparecimentos não tem ligação com ações criminosas, e sim com fugas voluntárias.

"A relação entre os desaparecidos na Baixada Fluminense e a ação de grupos milicianos é baixa. As saídas voluntárias são preponderantes, e os números altos também estão relacionados à densidade demográfica. Valendo ressaltar que os índices de encontros de desaparecidos são satisfatórios", disse.

José Cláudio Alves, sociólogo da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e autor do livro "Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense" (2008, Editora Consequência), afirma que há subnotificação dos desaparecimentos da milícia.

"Tem mães que não registram, aceitam que nada poderá ser feito. Há medo. Nas minhas pesquisas já ouvi moradores do rio Capenga afirmarem que são tantos corpos que estão no rio que eles chegam a empurrar para a água de volta. É algo natural para eles", disse.

Uma investigação da Draco (Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas) aponta que a milícia que atua na região fez uma aliança com traficantes para o enterro de corpos.

Pela negociação, o complexo da Maré passou a abrigar um cemitério clandestino da milícia. Em troca, os traficantes autorizaram a venda de drogas em áreas controladas pelos milicianos.

SÉRIE DE REPORTAGENS DA FOLHA DESCORTINA O PODER DAS MILÍCIAS NO RJ

Por dois meses, a reportagem da Folha de S.Paulo percorreu 60 áreas da zona oeste do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense perguntando a moradores e comerciantes se queriam falar sobre os milicianos. Mais de 130 entrevistas foram realizadas, incluindo especialistas e moradores. O resultado está na série de reportagens Milícia no RJ.

As reportagens mostram como esses grupos criminosos se mantêm, com relatos de extorsões sofridas por empresários, vassoureiros e prostitutas.

A repórter Bruna Fantti também explica como ocorreu a união da milícia com o tráfico e por que as áreas controladas por esses grupos lideram a expulsão de moradores de suas residências, entre outros temas.

A série retrata ainda outras vítimas da milícia, como mães que perderam filhos e mulheres que ficaram viúvas de criminosos por terem seus maridos mortos em disputas por território.

VIA… NOTÍCIAS AO MINUTO     

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