O Madeira virou um corredor silencioso, sem vibração, sem movimento e sem muita vida -num cenário em que já não existe horizonte há semanas, encoberto pela fumaça das queimadas que dominam Rondônia.
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VINICIUS SASSINE E LALO DE ALMEIDA
PORTO VELHO, RO (FOLHAPRESS0 - O rio Madeira, o maior e mais decisivo afluente do rio Amazonas, se transformou em bancos de areia a perder de vista na altura de Porto Velho.
O Madeira virou um corredor silencioso, sem vibração, sem movimento e sem muita vida -num cenário em que já não existe horizonte há semanas, encoberto pela fumaça das queimadas que dominam Rondônia.
No último dia 3, o rio atingiu um nível mínimo recorde em Porto Velho, sem precedentes na série histórica iniciada em 1967.
Medições compiladas pelo SGB (Serviço Geológico do Brasil) mostram que a cota do rio ficou em 1,02 m, ultrapassando o recorde anterior, de 1,10 m em 2023, ano de seca extrema na Amazônia ocidental.
Agora, a estiagem se mostra mais severa, com o rio mais seco na região da capital de Rondônia, e mais duradoura, alcançando marcas históricas ainda no começo de setembro -em 2023, o Madeira atingiu baixas recorde para aquele momento em outubro e novembro.
Em 2024, além de isso se dar no começo de setembro, ocorre em meio a uma escassez absoluta de chuvas e a queimadas descontroladas em Rondônia. A seca ainda tem um longo caminho pela frente, e o rio tende a baixar ainda mais.
A alteração de paisagens, ora com cheia ora com estiagem, é uma característica amazônica. As comunidades ribeirinhas e tradicionais se adaptam a esses ciclos. O que tira essas comunidades do prumo são os extremos, cada vez mais recorrentes, como agora, com duas secas severas e extremas seguidas.
A constituição de bancos de areia com largura de 1 km e ao longo de vários quilômetros do rio isola comunidades inteiras, que vivem do cultivo de banana, mandioca, melancia e milho. A seca impacta o modo de vida das pessoas, que tentam garantir a produção mesmo sem chuva, o transporte até Porto Velho mesmo sem rio, o acesso a água potável mesmo com poços secos.
A reportagem da Folha esteve em uma dessas comunidades, a Itacuã, que fica a uma hora de Porto Velho. As famílias estão do outro lado do rio.
A rotina da comunidade, quando não há estiagem, passa por cruzar o rio diariamente em embarcações, transportando a produção de banana, melancia e milho até o outro lado do Madeira, para envio a feiras e mercados na cidade. A água chega até o porto da comunidade, e uma rampa garante o acesso a terra firme na outra margem.
Esse cenário já não existe mais, nem essa rotina. Os cachos das bananas que se desenvolvem são transportados nos ombros pelos bancos de areia, até o ponto em que a embarcação alcança. No outro lado, é preciso subir um barranco, pela impossibilidade de uso da rampa.
Parte dos moradores deixou Itacuã para tocar a vida na margem oposta, enquanto perdurar a seca. Os que permanecem no lugar buscam garantir a produção das roças. As histórias se repetem em diversas comunidades enfileiradas. Segundo os moradores, são cerca de 500 famílias vivendo essa realidade nesse ponto do rio Madeira.
Parte dos agricultores que cultivam banana, principalmente os mais jovens, migrou para a atividade após a destruição de dragas de garimpo em ações do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e da PF (Polícia Federal).
A exploração ilegal de ouro no rio Madeira, por meio de dragas, é recorrente, de Rondônia ao sul do Amazonas. Somente uma operação feita na região de Humaitá (AM), no último mês de agosto, resultou na destruição de 459 dragas. Garimpeiros confrontaram a polícia e botaram fogo em pontos da cidade para tentar impedir a ação.
Blendo Trindade, 27, atuou no garimpo de ouro no rio Madeira, com draga, até 2022, quando a embarcação foi destruída numa ação da PF. "Todo garimpeiro virou plantador de banana", diz.
Ele e o irmão, Ricardo Trindade, 26, vivem em Itacuã e trabalham no cultivo de banana. "Está difícil porque, com essa seca toda, as plantas não estão se desenvolvendo", afirma Ricardo.
Cachos de banana se perdem ainda pela impossibilidade de transporte. Itacuã pode ser acessada pela parte de trás, por terra, mas a estrada está em péssimas condições, e não há caminhão disponível para a necessidade de todas as comunidades.
Os agricultores preferem, assim, cruzar os bancos de areia, o que existe de rio e o barranco para dar vazão à produção.
O preço da banana está baixo, porque parte do que é produzido fica represada, sem alcançar outras cidades, em razão das condições ruins de navegação no rio. Também há mais plantação e mais concorrência, com ex-garimpeiros atuando na agricultura.
A pesca já não é fonte de renda nem de sustento, desde a construção da hidrelétrica Santo Antônio no rio, segundo os agricultores. A hidrelétrica -que paralisou parte de suas unidades geradoras devido à baixa histórica do rio– afirma que as obras não alteraram a qualidade da água e que as condições para a ictiofauna foram preservadas.
"Antigamente, a praia não era desse tamanho", diz Raimundo do Nascimento, 67, que permanece com a família em Itacuã, para cuidarem da roça. Ele planta banana, melancia, açaí, laranja, pupunha e cacau. "As bananeiras não estão engrossando os cachos."
Nascimento vê interferência da exploração intensa por garimpo no destino do rio. "O garimpo remexeu muito, assoreou bancos de areia."
A comunidade tem dificuldade de acesso a água para beber, que é transportada da outra margem. Para banho ou cozimento de alimentos, vem de um poço artesiano.
Segundo os moradores, a Defesa Civil da Prefeitura de Porto Velho prometeu entregar água potável nesse momento de agravamento da seca.
Segundo a Defesa Civil, falta água potável em Itacuã e em mais 21 comunidades. O órgão afirmou que houve processo emergencial de compra de 187 mil litros de água mineral para atendimento às comunidades. Essa distribuição deve se estender até novembro e contar com doações de água pelo setor privado, segundo a Defesa Civil.
Haverá ainda perfuração de 23 poços artesianos, como forma de contornar a escassez, conforme o órgão da prefeitura de Porto Velho.
As reportagens da série Mudanças Climáticas na Amazônia contam com apoio da Rainforest Foundation Norway
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